Barrado
para sustentar projeto de irrigação e garantir que corra o ano todo por 70km,
rio seca antes de chegar à foz por causa da retirada irregular de água
JANAÚBA
(por Luiz Ribeiro) – Comunidades inteiras passando sede, enquanto a água corre
farta para irrigar culturas de banana e até pastos. A realidade é ligada pelo
leito de um mesmo rio – em uma região tradicionalmente castigada pela seca, o
Norte de Minas –, ao longo do qual pequenos produtores já se armaram de foices,
facões e enxadas para arrebentar à força captações que irrigam o agronegócio. O
foco de tensão é verificado no Rio Gorutuba, onde foi construída a Barragem do
Bico da Pedra. Além de abastecer o projeto de irrigação do Gorutuba e duas
cidades (Janaúba e Nova Porteirinha), a estrutura libera água que deveria
servir para a perenização do manancial e para o atendimento aos moradores
ribeirinhos até a foz, no Rio Verde Grande, ao longo de 70 quilômetros.
Foto
Luiz Ribeiro
Agricultores destroem barramento clandestino: revolta durante a
estiagem.
Próximo
à barragem há água em abundância, mas a partir de 20 quilômetros da represa o
rio está completamente seco, com centenas de família de comunidades quilombolas
(remanescentes de grupos escravos) prejudicadas. A situação também envolve uma
séria disputa travada entre grandes e pequenos produtores, motivo da inclusão
da região entre os 57 pontos de conflito hídrico mapeados pelo Instituto
Mineiro de Gestão das Águas (Agam), conforme mostrou série de reportagens do
Estado de Minas publicada nesta semana.
Grandes
irrigantes situados perto da Barragem do Bico da Pedra, mesmo sem outorga,
sugam o Gorutuba com bombas poderosas, que captam a água para sustentar a
agropecuária, deixando prejudicadas cerca de 1 mil famílias ao longo do rio. No
ano passado, cansados de esperar e de cobrar providências dos órgãos públicos, cerca
de 20 pequenos produtores de comunidades quilombolas da localidade de Vila Nova
dos Poções, no município de Janaúba, resolveu agir por conta própria e destruir
os barramentos feitos pelos irrigantes. A batalha durou pelo menos três meses,
entre julho e outubro. “A gente ia lá, desmanchava os barramentos e logo depois
os irrigantes barravam o rio de novo, usando sacos de areia misturada com
cimento”, relata Paulo Brito, presidente da Associação Quilombola Bem-Viver,
que criou na região o movimento “Água para todos”.
Brito
disse que o conflito teve um “cessar-fogo” no fim de outubro, quando o volume
do Gorutuba aumentou com a chega das chuvas. No entanto, em maio deste ano, com
o fim do período chuvoso, os pequenos agricultores voltaram a sofrer com a
falta de água. “Agora, a nossa esperança é uma maior fiscalização por parte dos
órgãos públicos, para que a gente não tenha de agir com as próprias mãos
novamente”, diz o líder comunitário.
A Barragem do Bico da Pedra garante o fornecimento de água para cerca de 5 mil
hectares no Projeto Gorutuba, implantado pelo governo federal, que conta com
490 produtores e tem grande produção de frutas. Paulo Brito salienta que a
barragem libera água suficiente para o atendimento aos irrigantes da margem
esquerda (não atendidos pelos canais que levam a água captada diretamente no
reservatório) e para sustentar todos os pequenos proprietários rio abaixo. “O
grande problema é a ganância dos grandes produtores, que não querem dividir a
água com os pequenos”, denuncia o presidente da associação quilombola.
Foto
Luiz Ribeiro
Lerindo caminha pelo leito seco quilômetros abaixo da represa:
desolação.
Ele
ressalta que foram identificadas 72 captações clandestinas em um trecho de
pouco mais de 20 quilômetros, entre a Barragem do Bico da Pedra e a comunidade
de Vila Nova dos Poções. Em companhia de Paulo Brito, a equipe do Estado de
Minas percorreu um trecho do Gorutuba e flagrou várias bombas usadas sem
outorga por grandes produtores. As captações clandestinas são feitas,
inclusive, por agricultores que já recebem água diretamente dos canais que saem
da barragem. “Isso ocorre porque não pagam nada pela água captada sem outorga”,
observa o líder comunitário. Ele cobra maior fiscalização por parte do
Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). “É preciso que seja fixado um
limite do uso pelos grandes irrigantes, para que a água liberada da Barragem do
Bico da Pedra possa ser suficiente para todos”, diz.
Produtores
denunciam omissão
O
gerente do Distrito de Irrigação do Gorutuba (DIG), Ricardo Carreiro, disse
que, atualmente, além de 1.500 metros cúbicos por segundo (m3/s) destinados aos
canais do perímetro irrigado (margem direita), são liberados pela Barragem do
Bico da Pedra 960m3/s de água no leito do Gorutuba, para garantir a perenização
do manancial até sua foz, computado o consumo dos ribeirinhos. Mas ele
argumenta que o DIG não tem como controlar as captações clandestinas e que a
fiscalização é de responsabilidade de outros órgãos públicos, como o Igam.
O
presidente da Associação dos Irrigantes da Margem Esquerda do Gorutuba
(Assieg), Oscar Magario, informou que a entidade identificou bombas sem outorga
no rio, em um trecho de cerca de 15 quilômetros entre a barragem e a sede da
associação. Mas ele garante que as captações clandestinas são feitas por
produtores que não fazem parte da Assieg, que conta com 53 associados e
totaliza 1.300 hectares irrigados. “São produtores situados abaixo da barragem
e que usam a água aleatoriamente, sem nenhum tipo de controle, de domingo a
domingo”, denuncia. “Já reclamamos para o Ministério Público e outros órgãos,
mas nenhuma providência foi tomada”, completa.
Foto
Luiz Ribeiro
Barragem abastece irrigantes de projeto oficial, mas pequenos
agricultores alegam que mesmo quem recebe água faz captação clandestina no
leito.
E
a situação ainda pode se agravar. Oscar Magario sustenta que, desde maio, a
captação foi limitada pelo DIG a apenas dois dias por semana, o que, segundo
ele, está sendo insuficiente para o atendimento da demanda dos produtores.
“Agora, ainda estamos no inverno. Quando o sol esquentar, em setembro ou
outubro, a irrigação em dois por semana não será suficiente”, disse Magario,
alertando que os irrigantes podem ser obrigados a interromper a produção, com o
risco de deixar 5 mil pessoas desempregadas na região. O Estado de Minas entrou
em contato com o Igam, mas não obteve retorno.
Verde
revela a desigualdade
Enquanto
próximo à Barragem do Bico da Pedra grandes plantações de banana e pastagens
esbanjam verde em pleno período de seca, alguns quilômetros rio abaixo o
cenário é de desolação: o leito do Gorutuba está completamente seco. A água
liberada pela represa deveria chegar até lá, mas é sugada antes pelas bombas
clandestinas de grandes irrigantes. O Estado de Minas constatou a situação ao
percorrer mais de 60 quilômetros do curso d’água.
A
angústia de passar sede à beira do rio é encarada por pequenos agricultores
como Edson Batista de Oliveira, dono de uma propriedade próximo do distrito de
Vila Nova dos Poções, em Janaúba. Ele conta que acima do seu terreno, um grande
empresário envolvido na política da região instalou sem outorga uma bomba
poderosa, que desvia a água do rio para uma lagoa. O agricultor disse que antes
cultivava cinco hectares, área que caiu para dois hectares. “Os grandes não
deixam passar água para a gente que está mais abaixo do rio. É preciso aumentar
a fiscalização”, cobra Edson, que no ano passado integrou o grupo que destruiu
barramentos no Rio Gorutuba.
Outro
pequeno produtor prejudicado é Reinaldo Lino Madureira, de 57. Ele conta que já
chegou a cultivar 10 hectares com banana e hortaliças. Como água não chega
mais, se viu obrigado a recorrer a um poço tubular. “Mas a energia para tirar
água é muito cara e só posso trabalhar em cinco hectares”, reclama. “Está
faltando bom senso por parte dos grandes produtores”, opina o presidente da
Associação dos Pequenos Agricultores de Vila Nova dos Poções, José Antônio da
Silva, que também denuncia a exploração descontrolada de poços tubulares na
região. “Existem fazendeiros que tem até 20 poços dentro de suas propriedades”,
reforça Paulo Brito.
A
equipe do Estado de Minas também visitou comunidades quilombolas em pontos mais
distantes da Barragem de Bico da Pedra, onde o rio, só corre mesmo no período
das chuvas. “Antes o rio tinha muito peixe e a gente tinha como plantar o ano
inteiro”, diz Lerindo Bispo da Silva, descendente de escravos da comunidade de
Açude, ao caminhar pelo leito do Gorutuba, completamente seco. Casas
abandonadas na região denunciam que o secamento também contribuiu para a saída
de antigos moradores em direção à cidade. (Fonte: jornal Estado de Minas,
edição de 09 de julho de 2015)
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